ESTEREOTIPIAS NA INFÂNCIA
Por Sonia B. Hoffmann


1 Introdução

Algumas pessoas podem sentir-se inseguras e desorientadas diante dos comportamentos e condutas estereotipadas apresentadas por algumas crianças, a ponto de considerá-las como estranhas. Na grande maioria dos casos, os próprios profissionais que atuam na área da habilitação e/ou reabilitação infantil permitem-se o direito de rotulá-las sempre como patológicas ou, pior, deixam estas condutas passarem desapercebidas.

Isto ocorre, provavelmente, devido à falta de conhecimento e entendimento do processo de formação e instalação das estereotipias em diferentes faixas etárias e nas diversas situações. Este desconhecimento, causado por vários motivos que merecem ser estudados com profundidade, podem acarretar sentimentos de rejeição ou repressão, provocando o isolamento e a marginalização destas crianças. Por sua vez, elas refugiam-se em si mesmas e acentuam os comportamentos, dificultando ou impossibilitando sua integração social e educativa.

Além disto, a palavra estereotipia é frequentemente utilizada com um certo descuido, atribuindo-se a este termo uma conotação vaga, ampla e generalizada, sendo, em muitas ocasiões, atividades motoras e/ou verbais geradoras de tantos transtornos e, mesmo assim, seus mecanismos ficam aglutinados na expressão "hábitos motores" sem levar-se em consideração a complexidade de tal adaptação ou desordem, suas causas, categorizações e especificidades.

Neste trabalho, pretendemos enfocar a importância do estudo das estereotipias e realizar a descrição de algumas condutas estereotipadas características, mas não exclusivas, encontradas em crianças com cegueira congênita. Porém, para que tal ocorra, torna-se necessária a conceituação de estereotipia, o estabelecimento de suas causas mais frequentes, suas categorizações e a descrição de algumas especificidades das mesmas e de algumas condutas estereotipadas como os blindismos e os maneirismos - enfatizando o comportamento infantil em todas as oportunidades.

A escolha deste tema tem o duplo objetivo de ampliar informações sobre as estereotipias e de provocar a redução de sentimentos de ansiedade, repressão, insegurança, paralisação e alienação frente a situações de diferença produzidas por certos comportamentos infantis, principalmente aqueles encontrados em crianças cegas sem estimulação ou orientação adequadas, para que não venhamos a estigmatizá-las e, em
  muitos casos, deficientizá-las ainda mais.

2 Conceituação de Estereotipia

Estereotipia origina-se de dois vocábulos gregos (steros= sólido ou firme, typos= molde ou modelo) que, fusionados, tomaram uma conceituação própria.

A estereotipia é, em essência, uma defesa compulsiva" (CANTAVELLA et al., 1992) que as crianças podem utilizar diante dos estímulos externos percebidos por elas. Estes estímulos se modificam conforme o estado emocional da criança e o contexto ambiental onde está inserida, bem como em função da situação temporal e espacial nas quais determinado comportamento foi produzido.

Apesar dos comportamentos e condutas estereotipadas, motoras ou verbais, serem externalizadas pelas crianças nas mais variadas maneiras e em diferentes situações, todas elas apresentam como característica comum uma conduta repetitiva, involuntária ou inconsciente, de acordo com um modelo mais ou menos fixo, constituindo uma vasta gama de atividades que terá maior ou menor influência na construção do ato motor e linguístico da criança, bem como no desempenho de suas atividades diárias (sociais, educativas, cognitivas, físicas e emocionais), conforme a qualidade e a frequência dos episódios, a fenomenologia da conduta e a idade da criança producente.

Considerando a visão etológica de estereotipia, podemos definí-la, segundo SAMBRAUS (1985), como a conduta referente a algum padrão ou modelo fixo de atividade a qual "possui conotações de anormalidade e uma conduta que se produz de forma determinada". Para este autor, as estereotipias apresentam três características: o modelo produzido é morfologicamente idêntico, este comportamento deve ser repetido constantemente da mesma forma e a realização da atividade produzida não tem um objetivo determinado.

Em nosso parecer, a palavra "produzido" deve ser substituída por "reproduzido" já que existe a repetição fiel de um comportamento, logo há uma reprodução. Em relação à inclusão de "falta de objetivo" no conceito de estereotipia, somos remetidos ao pensamento de que, algumas vezes, os objetivos da conduta produzida de "forma independente da consciência do indivíduo" (CANTAVELLA et al., 1992) não estão claros
somente para o observador.

Quanto ao fato da referência à "anormalidade" do movimento, é necessário lembrar que, assim como tiques e hábito motor, por exemplo, não são sinônimos entre si mas categorizações de estereotipias, também não podemos considerar que os comportamentos estereotipados signifiquem, necessariamente, a presença de alguma patologia instalada. Padrões motores ou dislalias patológicas decorrentes de alterações psicomotoras ou de lesões neurológicas ocorrem frequentemente. No entanto, diariamente deparamos condutas estereotipadas de fundo social, moral, auto-agressivo, educativo e de rituais, sem que sejam consideradas anormais. Isto demonstra que os critérios de estabelecimento tanto dos objetivos quanto de anormalidade das condutas estereotipadas devem ser revistos, pois assim como diversas causas desencadeadoras de estereotipias, também a análise e critérios devam, talvez, ser ampliados.


   3 Causas para o estabelecimento de estereotipias

A formação e a instalação de condutas repetitivas estereotipadas, assim como a qualidade, frequência e a intensidade das mesmas, foram pesquisadas e estudadas a partir de comportamentos de animais e de pessoas. Diversas causas, de origem neurológica, psíquica e social, são apontadas como responsáveis e indicadoras de estereotipia, sejam estes movimentos uma reação psicocorporal ou uma forma da criança responder expressivamente, com elementos do seu mundo interno, as demandas, de qualquer ordem, do mundo externo.

Há uma diversidade de causas que interferem direta ou indiretamente no desencadeamento das condutas estereotipadas em um dado momento da etapa vivenciada pela criança, e mesmo na persistência desses comportamentos durante sua vida. Abordaremos aquelas causas que nos parecem interferir de modo mais intenso e profundo nas atitudes, posturas e respostas repetitivas da criança às diferentes situações e solicitações que se lhe apresentam.

O surgimento de estereotipias, estudadas em diversas espécies de animais, está frequentemente relacionado ao mal funcionamento do sistema de controle de sua conduta ou, então, ligado à própria impossibilidade
em controlar seus impulsos e motivações no desempenho de algum movimento ou vocalização. No entanto, estas causas não significam que os movimentos estereotipados deixem de fazer parte do repertório de condutas normais assumidas pelo animal ou (transferindo-se para o homem as mesmas conclusões) pela criança.

A observação de comportamento motor em crianças, com ou sem deficiência motora, mental ou sensorial, confinadas ao berço e, pela nossa prática, restritas ao espaço do "quadrado" demonstra que elas apresentam uma redução na amplitude articular dos movimentos e na sua diversificação. Em consequência, há uma forte tendência à repetição e estereotipização destes movimentos para além daquelas produzidas pelas ritmias evolutivas: facilitadoras do desenvolvimento neuropsicomotor infantil.

A partir desta restrição espacial, podemos relacionar outro fator muito importante no processo de formação de condutas estereotipadas: o isolamento sociocultural. Ao ser afastada e marginalizada do convívio social e cultural, a criança é naturalmente impedida: de captar novas informações do ambiente, de desenvolver outras habilidades motoras e linguísticas, de trocar subjetividades entre seu mundo interno e externo e, entre outros, será impelida à estagnação pela falta do desejo do seu crescimento por parte do Outro: pais, irmãos, colegas, professores...

No entanto, não é necessário somente o isolamento social para que a criança refugie-se em seu corpo psicomotor e deixe de ampliar seu leque
de habilidades motoras, afetivas e verbais. Um ambiente que pouco ou nada lhe ofereça em termos de estimulações sensoriais e emocionais, solicitações e modelos motores e verbais ou, ainda, possibilidades de
recriação do movimento, da expressividade e do ensaio erro-acerto irão produzir na criança os mesmos efeitos e, logo, a forte propensão aos comportamentos estereotipados.

Sendo verdadeiro que o excesso de luz limita a visão tanto quanto a falta de luz, o mesmo podemos concluir quanto à submissão da criança aos
ambientes com carência ou excesso (não confundir com riqueza) de estímulos e demandas emocionais, verbais e/ou motoras. Sentindo-se tanto frustrada quanto excitada, entediada quanto hiperativa, ela igualmente irá acumular tensões e, em um ciclo vicioso, gerar estresse-angústia- necessidade de descargas motoras e/ou verbais através de estereotipias.

Esta submissão pode ocorrer não apenas pela imposição do adulto ou do ambiente, mas também pela própria incapacidade da criança em controlar e administrar as (in)formações oferecidas pelo meio no qual está inserida. Se o grau de exigência do meio em relação às respostas psicomotoras infantis for alto ou baixo e, se a isto associar-se um baixo ou um alto nível de atenção da criança quanto ao que está ocorrendo com o seu mundo interno ou externo, ela sentir-se-á perdida e em conflito (consciente ou não), devolvendo ao ambiente movimentos rígidos e repetitivos ou, então, paralisias comportamentais perseverativas.

Os vínculos afetivos estabelecidos pela criança também influenciam ou decidem o processo de instalação de condutas estereotipadas. A existência ou o não rompimento brusco e intenso do vínculo da criança com sua mãe (ou com a pessoa que realiza a função materna) é de vital importância para a construção e manutenção de sua vida comunitária sadia: sem a formação de medos neuróticos, desordens obsessivas ou traumas psicossociais. Logo, há grande viabilidade de que estereotipias patológicas não surjam nas crianças com ou sem deficiência.

No caso da criança ter uma deficiência, torna-se necessário o cuidado da verificação e análise do nível de adaptação desta criança a sua perda ou privação sensorial e motora, assim como dos sentimentos de sincronia existentes em sua relação social (principalmente com os pais).

Além destas verificações e análises, são muito importantes a constatação e a promoção da existência de recursos educativos adequados durante sua fase escolar para que frustrações, ansiedades exageradas e permanentes não congelem o desenvolvimento da criança e a isto não se associem estereotipias.

Contudo, conforme investigações realizadas em animais, ficou demonstrado que a privação sensorial - basicamente a visão - não é isoladamente causa para a formação e persistência de condutas estereotipadas, mas que a esta deficiência devem agregar-se alguns dos fatores acima mencionados.

Assim, em síntese, as estruturas neurológicas infantis, sua capacidade em controlar suas emoções ou seus movimentos e a qualidade das relações estabelecidas com seus pais (especialmente com quem realiza a maternagem) e com o ambiente físico-social podem contribuir ou não para o surgimento e fixação de padrões rígidos e repetitivos de comportamento, frequentes e inalteráveis, expandindo-se para além do tempo normal da ocorrência dos movimentos estereotipados do desenvolvimento neuropsicomotor infantil, ou das estereotipias evolutivas.

4 Categorizações de Estereotipias

Como vimos, as estereotipias constituem um fenômeno de repetição de um comportamento motor ou linguístico, mais ou menos rígido, provocado por uma diversidade de causas e externalizado de várias maneiras que foram amplamente estudadas. Diversos autores abordam este tema com profundidade, porém, muitos deles apresentam suas várias categorizações isoladamente ou, então, sem a preocupação de enfatizar e situar a existência destas categorias, envolvendo-as sob o nome genérico de estereotipias.

Para facilitar o estudo das mesmas e para a melhor compreensão destas categorizações, adotaremos a classificação de estereotipias apontada por CANTAVELLA et al. (1992).

4.1 Estereotipias de desenvolvimento normal ou de evolução Certos comportamentos estereotipados ou rítmicos são encontrados na grande maioria das crianças nos momentos importantes que marcam as etapas de aquisição de novas habilidades motoras, emocionais e de linguagem, acentuando-se na fase de transição de uma etapa para outra. Elas utilizam-se destes movimentos e condutas como forma de experimentar, testar e fortalecer seu corpo para a realização de determinada atividade corporal, bem como servem-se destes comportamentos repetitivos e rítmicos para a aprendizagem das motricidades ampla e fina e, também, para o desenvolvimento da linguagem.

Outrossim, as crianças encontram nestas condutas uma forma instintiva de satisfação, episódios facilitadores do desenvolvimento neuropsicomotor, elementos colaborativos/responsáveis no processo de formação do "eu" e, ao se tornarem mais estruturadas (crianças e condutas, em nosso parecer), manipulam estas condutas para expressarem a emoção (AJURIAGUERRA, 1977).

De modo geral, as manifestações rítmicas se apresentam de forma regular, brusca e com variação de amplitude e extensão corporal de criança para criança. Podem ser classificadas, a partir do grau de desenvolvimento neuromotor infantil, em ritmias cefálicas, óculo-cefálicas e ritmias cefálocorporal (com a inclusão ou não dos membros superiores). Para GALLAHUE (1995), "as estereotipias rítmicas infantis oferecem evidências de que o desenvolvimento motor humano é um sistema autoorganizado, buscando um controle motor amadurecido".

Os movimentos rítmicos são produzidos em qualquer momento e, ao serem realizados durante o sono da criança, recebem a classificação especial de "ritmias do sono" onde encontramos, principalmente, o bruxismo e os sonilóquios. Estes comportamentos infantis são considerados normais enquanto existir imaturidade biológica ou neurológica, consistindo em ritmias ou descargas motoras elementares e exploratórias (como esfregar com as mãos o nariz ou as orelhas, tocar a pélvis e a zona genital). Todavia, ao persistirem e se estenderem para outras fases motoras, nas quais já não apresentam um propósito definido e influenciam negativamente o processo de desenvolvimento infantil, estes comportamentos estereotipados constituem-se como patológicos.

4.2 Movimentos heterotônicos estereotipados Os movimentos heterotônicos estereotipados, também chamados descargas motoras parasitárias repetitivas, ocorrem esporadicamente e estão relacionados ao surgimento de situações emocionais intensas e repentinas ou, então, à situações que exijam alto nível de atenção e concentração. Estas descargas motoras ocorrem através da externalização de movimentos acessórios ou associados aos movimentos da atividade ou da ação principal que a criança está executando e, embora tenha sido referido que estas descargas "não apresentam um valor comunicativo para o outro" (CANTAVELLA et al., 1992), acreditamos que, através destas atitudes e, talvez, de forma inconsciente, a criança está nos comunicando seu estado emocional ou de atenção, pois, segundo estes mesmos autores, estes movimentos heterotônicos "sempre são reflexo ou expressão do estado emocional da criança ligado a uma situação de interação".

Quando os movimentos heterotônicos ou descargas parasitas se manifestam, torna-se de grande importância a análise do real nível de consciência apresentado pela criança em relação à situação e ao que está ocorrendo com o seu corpo, assim como é importante a verificação do seu nível de atenção e da coerência existente entre a subjetividade do seu mundo interno e a realidade externa (envolventes e envolvidas pelo episódio) já que a criança, por algum motivo interno ou externo, pode estar com dificuldade de controlar e organizar a gama de (in)formações recebidas, gerando uma ansiedade que é canalizada e extravasada pelo comportamento motor de forma estereotipada.

Este comportamento é colaborador no processo de redução desta ansiedade e na derivação da tensão interna acumulada pela criança. Como exemplificação de descargas motoras parasitárias repetitivas referimos o movimento de lábios enquanto a criança estuda ou o seu balanceio de pernas ao executar alguma tarefa.

4.3 Comportamentos estereotipados Esta categorização de estereotipias refere-se aos comportamentos motores e verbais socialmente aceitos. De um modo geral, correspondem à respostas mais ou menos rígidas dadas a situações e acontecimentos geradores de grande impacto emocional. São externalizadas mediante capacidade e aptidão para a expressividade corporal e facial da criança. Estes comportamentos possuem um grande valor comunicativo, pois sinalizam imediatamente o estado emocional da criança devido seu funcionamento como causa-efeito, "de forma consciente ou pré-consciente" (CANTAVELLA et al., 1992), apesar de estarem revestidas por um padrão rígido na expressão de um movimento ou vocalização, de serem morfologicamente invariáveis e constante em sua manifestação.

Tais fatores levam a uma pobreza de gestos ou sons para a expressão da resposta a ser dada - a menos que haja a possibilidade de recriação desta expressão através da percepção infantil. Esta conduta não permanece fixada ou plasmada ao comportamento da criança, surgindo apenas quando ocorrer uma situação similar. Isto é, ela desaparece no momento em que cessa o acontecimento gerador do impacto emocional, desencadeante do comportamento estereotipado (como os movimentos corporais e vocais durante a explosão de alegria após um gol).

Com o crescimento infantil, a aprendizagem e a internalização destas condutas pela vivência das mesmas, a criança torna-se mais capaz de adaptar o tempo destas respostas e, também, de deslizar comportamentos e expressões de mesmo significado para diferentes situações geradoras do mesmo tipo de impacto emocional. Nesta categorização, podemos incluir os maneirismos quando se estabelecem "dentro de um contexto de comunicação interpessoal adequado e aceito socialmente" (CANTAVELLA et al., 1992).

Nesta conduta, os comportamentos gestuais e verbais apresentam menor rigidez, são mais variados e complexos, ocorrendo sob a forma de imitação bastante exagerada da linguagem gestual humana ou a inclusão repetitiva e constante, de palavras ou vocalizações não significativas para o discurso (atitudes conhecidas como estereotipias verbais).

4.4 Estereotipias em forma de tiques, hábitos motores e hábitos verbais Nesta categoria, estão agrupadas as condutas estereotipadas motoras e verbais formadoras de comportamentos inclusos em tiques, hábitos motores e hábitos verbais.

4.4.1 Tiques Considera-se como tiques, as contrações musculares rápidas, repetidas e estereotipadas, limitadas, inicialmente, "aos músculos da face (palpebrais e periorais), pescoço e ombros. Determinam o deslocamento dos segmentos atingidos e podem também localizarem-se no tronco, membros e músculos que intervém na respiração e fonação, assim como podem mostrarem-se difusamente distribuídos" (TOLOSA E CANELAS, 1969).

Os tiques apresentam grande variabilidade na forma e na frequência da ocorrência, não possuem um propósito definido, são movimentos bruscos e têm um caráter convulsivo, constituindo-se em contrações rápidas e rítmicas dos músculos anteriormente mencionados. Estas contrações são provocadas pela distensão passiva, forçada e contínua de tais músculos. Ocorrem involuntariamente e seus movimentos compulsivos sofrem influência de fatores emocionais (Tolosa e Canelas, 1969). Contudo, para CANTAVELLA et al. (1992), estes comportamentos encontram-se "sob controle voluntário parcial durante períodos limitados e a criança pode tratar de mascará-los convertendo-os em movimentos pseudovoluntários". Em estudos realizados por AJURIAGUERRA (1977), os tiques mais frequentes, motores e verbais, foram localizados e relacionados na seguinte ordem:

- faciais: desorbitamento de olhos, piscadas, movimentos das sobrancelhas da testa, do nariz e dos lábios; estalar da língua, assovios, lambidas e movimentos do maxilar; - da cabeça e do pescoço: elevação da cabeça, movimentos de afirmação, negação, rotação e saudação; - de tronco e membros: elevação de ombros (normalmente de um lado); de braços, mãos e dedos (arranhar-se); saudação e estremecimentos com o tronco; movimentos abdominais e dos membros inferiores (troca de passos, saltos); - respiratórios: bufar, roncar, aspirar, bocejar, soprar, soluçar e suspirar; - laringofacial: tosse associada aos movimentos da face; pigarreio; - digestivos: deglutição com aerofagias, arrotos; - fonatórios /verbais: condutas associadas aos comportamentos anteriores acompanhados por ruídos inarticulados, cacarejos e latidos, por exemplo.

Os tiques verbais são formados pela emissão de sílabas articuladas e pela repetição de palavras e frases sempre de modo idêntico (ecolalias) e de caráter precoce (coprolalias).

4.4.2 Hábitos motores Estas estereotipias compreendem um conjunto de comportamentos motores repetitivos, realizados de forma voluntária ou por uma incapacidade da criança em autocontrolá-los, evitando sua produção ou sua execução. Para AJURIAGUERRA (1977), os hábitos são parte da maneira de ser de cada criança em particular, alterando-se conforme: a necessidade de cada uma, a fundamentação de sua personalidade e a etapa do seu desenvolvimento, acrescentando-se a estas persistências e/ou mudanças, as oportunidades da prática dos hábitos oferecidas pelo seu mudo externo, a disponibilidade do seu mundo interno e o grau de satisfação decorrente da execução destes comportamentos.

Os hábitos motores são variados e complexos, porém, a tricotilomania e a onicofagia são aqueles mais frequentemente encontrados.

4.4.2.1 Tricotilomania A tricotilomania consiste no ato de arrancar o pêlo ou o cabelo tanto do couro cabeludo quanto das axilas, sobrancelhas ou púbis. Não é um hábito infantil raro e pode extender-se até a adolescência ou à idade adulta, estando vinculado a uma sensação autoerótica. Tem uma maior frequência no sexo feminino e estudos não relacionam a presença deste hábito motor (patológico ou não) ao nível intelectual da criança.

4.4.2.2 Onicofagia A onicofagia refere-se ao comportamento de roer ou morder as unhas, consistindo em um hábito bastante frequente nas crianças em idade escolar. Esta conduta não possui nenhuma relação com o nível mental da criança, mas este hábito é muito influenciado pelo seu estado emocional e pelo nível de adaptação da criança ao meio em que se encontra.

4.4.3 Hábitos verbais Esta forma de estereotipia não apresenta o automatismo e o caráter obsessivo de tiques verbais, não estando também relacionada a componentes sociais dos maneirismos verbais, constituindo-se um meio termo entre estes dois comportamentos. Um exemplo deste tipo de conduta é a saudação repetida das crianças ao receberem algo.

4.5 Auto-sensorialidade A auto-sensorialidade é uma conduta de traços autísticos e, geralmente, encontra-se em crianças que apresentam um forte núcleo psicótico e com grande reação de defesa contra um mundo externo que as agride por alguma causa significativa a elas, utilizando, para isto, mecanismos arcaicos (mas organizados) de dissociação. A auto-sensorialidade pode ocorrer em crianças que não apresentam transtorno em seu desenvolvimento neurológico ou psíquico. As manifestações estereotipadas ocorrem momentaneamente, tanto em relação à duração dos episódios quanto a sua frequência.

Nela, a criança isola-se do mundo externo e de uma realidade dolorida através de comportamentos estereotipados, satisfazendo-se e preenchendo-se com o prazer que a realização destes comportamentos provoca. Este isolamento acentua-se cada vez mais e a criança acaba por voltar-se para si e efetuar intensamente uma regressão generalizada, inibindo: os seus impulsos de curiosidade; seus desejos de conhecimento, de desenvolvimento e a sua busca pela integração com o ambiente. Logo, desorienta-se aos poucos para a vivência dos acontecimentos surgidos pela interação da subjetividade do seu mundo interno e externo.

A criança procura, insaciavelmente e pela auto-sensorialidade, sensações nunca perdidas mas que, por vários motivos, não conseguiu identificar e readquirir. Suas energias e atenção voltam-se para a motilidade sensorial causadas pelas estereotipias e por aquelas decorrentes, não investindo em outras atividades e afastando-se do mundo quanto mais estiver envolvida temporo-espacialmente com esas condutas.

A disposição das diversas condutas estereotipadas infantis, motoras e verbais, em diferentes categorizações facilita o estudo e a compreensão do funcionamento de um mecanismo tão complexo como o da estereotipia. No entanto, as muitas especificidades achadas nas estereotipias evolutivas, heterotônicas, sociais e condutas estereotipadas (como os tiques, hábitos motores e verbais), bem como os comportamentos de auto-sensorialidade, mostram-nos que entre elas existe a semelhança do instrumento utilizado pela criança para a sua manifestação: a motricidade e o manejo do corpo. Esta semelhança não implica, porém, equivalência entre as diferentes categorias de estereotipias, mas , por inferência, todas são subordinadas à capacidade de manifestação do equipamento motor da criança - sujeito as interferências afetivas, cognitivas e sociais.

Estas interferências decorrem das (in)formações percebidas e recebidas pela criança do seu mundo interno-externo e, conforme suas vivências e experiências, podem ser decisivas na instalação de um comportamento estereotipado. O conhecimento das estereotipias e dos elementos que as influenciam devem ser considerados para que possamos realmente avaliar com correção o comportamento motor infantil, tenha ou não algum tipo de deficiência, pois a presença de alguma privação física, sensorial ou mental não é por si só (e na maioria dos casos) justificativa para a permanência de condutas estereotipadas.

Podemos encontrar as suas variedades em qualquer criança, mas diante da frequência e intensidade das mesmas em algum grupo infantil, podemos nos referir a elas como características, mas não exclusivas, deste grupo. Esta caracterização (não exclusividade) será abordada durante a descrição dos blindismos e maneirismos, encontrados entre a grande maioria das crianças cegas congênitas, relatados no próximo segmento.

5 Estereotipias encontradas em crianças cegas congênitas

Antes da análise de algumas estereotipias caracteristicamente encontradas em crianças com deficiência visual - cegueira congênita -, consideramos importante ratificar o pensamento de que tais condutas são apenas mais frequentes neste grupo, não implicando alguma exclusividade. Com isto, acreditamos que a definição de cegueira e uma caracterização sucinta da criança deficiente visual poderá colaborar com a facilitação da tomada de contato com um assunto tão distante da prática de muitos profissionais que não atuam na área da Educação Especial ou da reabilitação de crianças com deficiência visual (especialmente com acréscimo de maneirismos e de blindismos). E mais: porque "nem todas as pessoas que possuem um déficit visual podem ser consideradas cegas e receber o mesmo atendimento" (ANACHE, 1994).

A deficiência visual é composta por dois aspectos: a cegueira e a baixa visão, que são ocasionados por vários motivos de origem neurológica, traumática ou por alguma anomalia na formação do globo ocular. Esta deficiência visual poderá ser congênita ou adquirida, total ou com projeção luminosa (no caso de cegueira).

A criança com baixa visão é aquela que apresenta "acuidade visual entre 6/20 e 6/60 no melhor olho, após correção máxima" (POLíTICA NACIONAL DE EDUCAçãO ESPECIAL, 1994), ou seja, esta criança apresenta resíduo visual suficiente, na grande maioria dos casos, para realizar leitura e escrita em tinta.

A criança com cegueira apresenta "perda da visão em ambos os olhos de menos de 0,1, no olho melhor e após correção, ou um campo visual não excedente de 20 graus no maior meridiano do melhor olho, mesmo com o uso de lentes para correção" (POLíTICA NACIONAL DE EDUCAçãO ESPECIAL, 1994). Educacionalmente, a criança cega total (ou com projeção luminosa) utiliza o Sistema Braille para sua comunicação escrita, percebe o mundo externo pela substituição das informações visuais por aquelas captadas pelos sentidos remanescentes e possui mecanismos próprios de construção do seu mundo subjetivo interno e de elaboração das informações recebidas do ambiente.

Por estas razões, consideramos complicado e irreal estudar e analisar a criança cega e suas condutas a partir da criança normovisual que tenha seus olhos fechados ou vendados por um tempo e espaço determinados, pois a qualquer momento poderá abrir os olhos ou tirar a venda e retornar a enxergar, sem ter de incluir nos comportamentos a tensão e a ansiedade de viver permanentemente cega em um mundo predominantemente visual. Temos, ainda, de levar em consideração o fato de que, segundo AJURIAGUERRA e MARCELLI (1991), "a motricidade da criança pequena é consideravelmente influenciada pela estimulação visual" e que o "desenvolvimento da criança será muito diferente se esta já tiver recebido informações visuais".

No entanto, é neste mundo que ela se encontra e é nele que os adultos lhe falam e tomam por referência sem que, na grande maioria das vezes, ela entenda o mecanismo: do seu funcionamento, das relações entre os objetos e as ações, o tempo e o espaço ocupado pelas ações e reações. Enfim, ela não consegue depreender uma lógica para esta intrincada rede chamada "mundo externo" - a menos que familiares e profissionais intervenham de forma adequada e facilitadora para que esta (ou parte) compreensão ocorra na criança cega. Não acontecendo este encadeamento de intervenções, ela inicia condutas cada vez mais estereotipadas, podendo derivar para a auto-sensorialidade ou, então, assumir comportamentos não aceitos socialmente como normais devido sua incapacidade de imitar, enriquecer e adequar seus comportamentos motores-verbais e, por uma necessidade de descarga motora ou por outras causas que podem conduzir às estereotipias, centrar-se nos blindismos e nos maneirismos.

5.1 Blindismos

Segundo CANTAVELLA et al. (1992), os blindismos são considerados como estereotipias e estão inseridos na categoria de hábitos motores, formando um conjunto articulado de condutas motoras repetitivas encontradas na grande maioria das crianças cegas sem ou com insuficiente estimulação psicomotora.

Os blindismos consistem, basicamente, conforme os autores acima citados, em comportamentos de olhar para a luz (quando a criança apresenta uma projeção luminosa) e realizar pressão ocular. Na pressão ocular, a criança cega cobre parcial ou totalmente um ou ambos os olhos (com um ou vários dedos ou com o dorso da mão), provoca o estiramento lateral do olho e o giro da pálpebra, realiza a pressão lateral do olho sobre o ombro de quem o segura nos braços ou contra um objeto. Esta pressão ocular também pode ser realizada contra a raiz da própria mão (entre as proeminências tenar e hipotenar) que se mantém aberta e dirigida para a frente.

Os blindismos ou ceguismos funcionam como espécie de proteção e, também, como forma de descarga motora que a criança realiza a fim de filtrar as suas trocas com um ambiente muitas vezes "ameaçador". No blindismo, as crianças cegas centram a atividade motora nos olhos por perceberem neles a causa de sua dificuldade em interagir com o meio ou, como referem CANTAVELLA et al. (1992), "como órgão falido na percepção visual, mas que conserva intacto as inervações de outras sensibilidades...".

As causas mais frequentes desta conduta estereotipada são a ansiedade e o estresse da criança cega e, diferente de demais estereotipias de hábito motor, estas condutas não modificam-se com tanta facilidade e rapidez porque a criança está demasiadamente ligada a sua região ocular devido à série de intervenções terapêuticas )oftalmológicas e cirúrgicas) a que é submetida, na grande maioria dos casos.

5.2 Maneirismos

LOWENFELD (1964) aborda os maneirismos como sendo condutas estereotipadas encontradas nas crianças cegas, utilizando, todavia, indiscriminadamente os termos blindismos e maneirismos para a descrição de vários comportamentos. Contudo, CANTAVELLA et al. (1992) apontam os maneirismos como outra especificidade de hábitos motores diferenciados dos blindismos.

As condutas de maneirismos mais encontradas nas crianças cegas são: o balanceio corporal, movimentos rápidos da cabeça (incluindo o balanceio), dedos enfiados na boca ou nos olhos, manipulação das orelhas, nariz e lábios. Quando a criança apresenta alguma projeção luminosa, é comum encontrar-se em seu comportamento o hábito motor de passar repetida e constantemente a mão em frente aos olhos para ter, com este movimento, a percepção de sombra e luz.

Várias são as teorias que tentam explicar a origem dos maneirismos, mas todas elas são apenas hipóteses que em muito se assemelham às causas dos blindismos. Resumidamente, tanto os blindismos quanto os maneirismos são condutas estereotipadas comumente encontradas em crianças com cegueira congênita, as quais, pela frequência dos episódios, tornam-se hábitos motores. Embora as causas para a instalação de estereotipias sejam bastante diversificadas, as crianças cegas utilizam estes mecanismos (como proteção ou como descarga motora), principalmente ao depararem situações que gerem ansiedade e estresse, apresentando dificuldade para adquirir, modificar ou adequar seus comportamentos motores devido sua impossibilidade de imitação ou de reforço visual.

6 Conclusão O estudo das estereotipias, realizado não exaustivamente neste trabalho, mostra-nos a complexidade e profundidade da abrangência e implicações de determinados comportamentos motores e/ou verbais infantis em seu próprio desenvolvimento neuropsicomotor, sua integração e inclusão sociocultural e na comunicação do seu estado emocional ou da sua habilidade em organizar e administrar as (in)formações provindas do seu mundo interno e externo.

Diante da realidade da existência de diversas causas (de origem social, neurológica ou psíquica) influenciadoras ou determinantes do surgimento e instalação de condutas rígidas, repetitivas e constantes produzidas involuntariamente e, segundo alguns autores, de forma inconsciente ou pré-consciente, pela criança frente a situações que podem gerar desde o estresse até o autoerotismo, passando pela exploração e testagem do seu equipamento psicomotor, todos nós envolvidos direta ou indiretamente no processo de desenvolvimento humano, em qualquer faixa etária, não podemos simplesmente fechar o nosso Olhar de profissionais, fingindo que condutas estereotipadas passíveis de alterar toda a trajetória de uma vida estão ou não ocorrendo.

A presença ou não destes comportamentos estereotipados são significativos e trazem em si um valor comunicativo do mundo infantil, cabendo a nós, adultos, o papel e a função de ler e interpretar estes comportamentos se realmente pretendemos interagir no processo de EducAção ou ReabilitAção. Porém, para que possamos realizar esta leitura e análise interpretativa da conduta estereotipada infantil, torna-se necessário o estudo aprofundado dos fatores facilitadores e paralisantes do desenvolvimento neuropsicomotor da criança, apresentando ou não algum tipo de déficit sensorial, mental e/ou motor, pois estes fatores podem alterar seus mecanismos por qualquer motivo, impedindo a criança de adaptar-se a novas etapas motoras ou a diferentes situações de demandas da sua subjetividade interna e externa. Além disto, no caso específico das estereotipias, o comportamento de uma categoria (comportamentos de desenvolvimento normal, por exemplo) pode passar a outra categoriza ção (por exemplo, hábito motor).

Escrito em 1996. Porto Alegre - RS



    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 AJURIAGUERRA, Julian de. Manual de psiquiatría infantil. 4.ed. Barcelona: Toray-Masson, 1977. p. 169-232. 984p.

2 AJURIAGUERRA, Julian de; MARCELLI, Daniel. Manual de psicopatologia infantil. 2.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, São Paulo: Masson, 1991. p.212-223.

3 ANACHE, Alexandra Ayach. Educação da pessoa com "deficiência" visual. Campo Grande: CECITEC/UFMS, 1994. 139p.

4 BRASIL. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: SEESP, 1994.


    5 CANTAVELLA, Francesc; LEONHARDT, Merce; ESTEBAN, M. Angels et al. Introducción al estudio de las estereotipias en el nino ciego. Barcelona: Masson, ONCE, 1992. 140p.

6 GALLAHUE, David L.; OZMUN, John C. Understanding motor development: infants, children, adolescents, adults. 3rd ed. Madison: Brown & Benchmark, 1995. p.160-163.

7 LINDSTEDT, Eva. O quanto uma criança vê?: um guia especializado em crianças deficientes visuais. [s.l.: s.n., s.d.] 38f.

8 LOWENFELD, Berthold. Our blind children: growing and learning. 2nd ed. Springfield: Charles C. Thomas, 1964. 240p.

9 SAMBRAUS, H. H. Stereotypies. In: Ethology of farm animals. [s.l.: s.n.] 1985 apud CANTAVELLA, Francesc; LEONHARDT, Merce; ESTEBAN, M. Angels et al. Introducción al estudio de las estereotipias en el nino ciego. Barcelona: Masson, ONCE, 1992. 140p.

10 TOLOSA, Adherbal P. M.; CANELAS, Horácio M. Propedêutica neurológica: temas essenciais. São Paulo: Fundo Editorial
        Procienx, 1969. 519p.

[PERMITIDA A DIVULGAÇÃO E A REPRODUÇÃO DESTE MATERIAL DESDE QUE CITADA A FONTE]


VOLTAR À PÁGINA PRINCIPAL